O orçamento de guerra, o endividamento e o futuro

A pandemia do coronavírus tem tido um impacto brutal sobre as contas públicas. Globalmente, o Fundo Monetário Internacional estima em US$ 9 trilhões o suporte fiscal. No Brasil, a necessidade abrupta e substancial de gastos alcançou o país ainda com déficit público expressivo (mais de R$ 95 bilhões no governo federal, em 2019, sexto ano seguido de déficit primário).

Algumas centenas de bilhões de reais serão necessárias, nas três esferas brasileiras de governo. Além disso, a premência de parar a economia para evitar a disseminação do vírus fez as receitas públicas despencarem. Calcula-se que o PIB brasileiro caia mais de 5% em 2020, acompanhando uma tendência mundial (cf., por exemplo, IMF, World Economic Outlook). Em consequência, o déficit público brasileiro em 2020 vai explodir, superando os R$ 800 bilhões.

Esses gastos envolvem desde as expressivas somas para a saúde propriamente dita, como hospitais de campanha, respiradores e ampliação de UTI’s, até o auxílio emergencial de R$ 600,00 para grupos vulneráveis (cerca de 50 milhões de pessoas), a complementação das transferências constitucionais a Estados e Municípios (FPE e FPM), a compensação aos Estados e Municípios pela perda de arrecadação com ICMS e ISS, além de diversas outras maiores ou menores despesas novas que surgiram.

Nesse cenário, como fica a Lei de Responsabilidade Fiscal? Qual a fonte de recursos para financiar um déficit tão expressivo? As respostas são múltiplas. Em primeiro lugar, logo no início da pandemia, o governo federal, seguindo comando da própria Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 65), editou (e foi seguido por vários Estados e Municípios) um decreto de calamidade pública, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, que liberou a União do cumprimento de diversos dispositivos ali previstos enquanto durar o estado de calamidade.

Reforçando a excepcionalidade da pandemia, o Supremo Tribunal Federal ampliou o rol de obrigações de cumprimento dispensado nesse período (ADI 6357), os relativos à demonstração de adequação e compensação orçamentária para a criação e expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da Covid-19.

E, mais relevante de todas as medidas, o Congresso Nacional aprovou a Emenda à Constituição nº 106, que instituiu “regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia”, o chamado “Orçamento de Guerra”, com as seguintes providências:

I) Possibilidade de contratação, pelo Poder Executivo Federal, por meio de processo simplificado, de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras. No caso de contratação de pessoal temporário, a Emenda expressamente dispensou a exigência de prévia dotação orçamentária e de autorização específica na Lei de Diretrizes Orçamentárias (art. 169, § 1º da Constituição Federal);

II) Dispensa de medidas de compensação para criação de despesas ou para renúncia de receitas destinadas a enfrentar a pandemia e suas consequências, desde que não sejam permanentes e com vigência e efeitos restritos à sua duração. Também se suspendeu a proibição de contratar com o Poder Público e dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios à pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social;

III) Dispensa da observância da chamada “Regra de Ouro”, que é a que veda a realização de operações de crédito que excedam as despesas de capital. Essa regra já poderia, por maioria absoluta, ser flexibilizada se houvesse autorização do Congresso Nacional por meio de créditos suplementares ou especiais. A emenda dispensou essa autorização específica no período da pandemia. O objetivo original é evitar endividamento público para cobrir gastos correntes. Como as despesas necessárias com a pandemia serão majoritariamente correntes, a restrição seria um óbice para o necessário enfrentamento do problema;

IV) Autorização para o Banco Central comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional, e ativos privados, também em mercados secundários nacionais, com classificação de risco BB – ou superior. Atendidos os requisitos de risco, a Emenda estabeleceu preferência para aquisição de títulos emitidos por micro, pequenas e médias empresas (mas exclusivamente no mercado secundário).Essa tem sido chamada a versão brasileira do “quantitative easing”, um conjunto de medidas adotadas pelo Federal Reserve Bank, pelo Banco Central Europeu e pelo Banco da Inglaterra desde a crise de 2008, para oferecer farta liquidez ao mercado financeiro, evitando que entre em colapso e contamine toda a economia. A pandemia do coronavírus reativou esse mecanismo em escala mundial, fazendo com que o Brasil passasse a adotá-lo também, superando inclusive obstáculos constitucionais.

Além disso, foi editada a Lei 13.979/2020, que flexibilizou procedimentos de compras relacionadas à pandemia, permitindo dispensa de licitação e pregão abreviado.

Como se nota, o governo brasileiro, em sua acepção ampla, que inclui os Três Poderes e as várias esferas, não ficou inerte, ao contrário, uma série de providências têm sido adotadas. Como não se sabe até quando a pandemia vai perdurar, o custo total é incerto, podendo superar os R$ 500 bilhões em despesas mais as perdas de arrecadação pela necessidade de parar a economia.

Esforços no mesmo sentido têm sido empreendidos mundo afora. Os Estados Unidos anunciaram um pacote de US$ 3 trilhões, mas diversos analistas apontam que esse número pode ser bem maior. Em boa parte, graças à ação do Federal Reserve Bank, o banco central americano. A União Europeia trabalha com um pacote de ajuda de 800 bilhões de euros, e a presidente do Banco Central Europeu declarou que não haverá limites para a compra de títulos públicos e privados para ajudar a financiar as novas despesas. A Alemanha, entre gastos orçamentários diretos, renúncia de receitas e financiamentos e garantias empreende gastos superiores a 30% do PIB. O Japão, mais de 15% do PIB, o Reino Unido, 20% do PIB. No Brasil, apesar de substancial, tem sido mais modesto numa comparação internacional, pouco mais de 5% do PIB, mas podendo se elevar bastante, conforme a trajetória da pandemia e suas consequências se apresentarem.

De onde os recursos vêm?

A maior parte, do aumento do endividamento público. Se as despesas primárias em 2020, no Brasil, serão R$ 800 bilhões superiores às receitas primárias, a emissão de títulos públicos pelo Tesouro Nacional é que vai financiar a grande parte dessa diferença. No início da pandemia, havia cerca de R$ 1,4 trilhão na conta-única do Tesouro Nacional no Banco Central. Em abril, R$ 400 bilhões haviam sido utilizados, em parte pelas novas despesas e em parte pelas dificuldades que o Tesouro tem tido para rolar a dívida. Mas há um limite, porque grande parte desses recursos é vinculada a gastos específicos. Mais de R$ 100 bilhões das reservas externas também foram utilizadas para essa finalidade.

A possibilidade de o Banco Central comprar títulos do Tesouro Nacional (Emenda Constitucional 106/2020) elimina, durante a pandemia, a vedação de o banco central conceder direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional (art. 164, § 1° da Constituição Federal). A Constituição só permite ao banco central comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional para regular a oferta de moeda ou a taxa de juros (art. 164, § 2° da CF). Com a pandemia, o País passou a ter a necessidade de o banco central financiar diretamente o Tesouro Nacional, para que este pudesse bancar as novas despesas e suportar a queda de arrecadação.

Esse mecanismo de o Banco Central financiar o Tesouro Nacional é uma forma de emissão monetária, mas se reflete na dívida pública, porque serão emitidos títulos públicos e estes, embora fiquem na carteira de ativos do banco central, são contabilizados como dívida pública.

É claro que é uma dívida intra-governo, mas certamente que tem impactos na economia. De modo contrário, teríamos um modo fácil, sem sacrifícios, para financiar as despesas governamentais.

A dívida pública brasileira deve aumentar em pelo menos dez pontos percentuais ao fim da pandemia. Esse número pode ser bem maior, se o problema perdurar por muito mais tempo. Não se sabe se a abertura gradual da economia vai trazer uma nova onda de contágios. O grau de incerteza é muito grande, os países sabem que poderão ter que fazer outros fechamentos se novos casos da doença surgirem com força.

A tabela a seguir mostra a projeção de evolução da dívida em países selecionados.

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O Orçamento de Guerra, o Endividamento e o Futuro

Como a tabela evidencia, a dívida pública terá um crescimento expressivo em 2020. O limite de endividamento se dá principalmente pelo mercado, uma vez que depende de os financiadores acreditarem que a dívida será honrada. Nesse sentido, os Estados Unidos têm um limite muito superior ao da Rússia ou do Brasil, por exemplo. Mas a possibilidade de financiamento diretamente pelo banco central alarga as possibilidades.

Como será o endividamento pós-pandemia?

Os anos pós-pandemia exigirão sacrifícios extras para arcar com aumento do endividamento. Isso pode envolver desde de aumento da carga tributária até medidas duras de contenção de despesas. Cada país, de acordo com sua capacidade de manter o financiamento do endividamento e com as escolhas políticas que fizer, terá diferentes formas de enfrentamento. Se um novo ciclo de crescimento econômico vier, o ajuste será mais suave.

Além disso, muitos outros problemas surgem quando medidas drásticas como as que foram adotadas são feitas emergencialmente e sem maior planejamento. Uma das mais comentadas é a ampliação do chamado “risco moral”. Como o banco central passa a poder comprar, durante a pandemia, títulos especulativos (BB-), muitos bancos que não fizeram as devidas análises de crédito acabam sendo beneficiados, “limpando” sua carteira, uma forma de socialização de riscos, que são transferidos ao contribuinte brasileiro.

A corrupção também é uma preocupação relevante. Diversas notícias de desvios surgiram em vários lugares do País. Como muitos controles foram afrouxados pela urgência das aquisições, permitindo-se dispensa de licitação para compras de bens e serviços relacionadas à pandemia, e até pagamento adiantado, é necessária transparência máxima para permitir o controle pela sociedade e pelas instituições de fiscalização, que devem permanecer atentas.

Outra inquietação é a inflação, um fantasma que assusta os brasileiros, principalmente os mais velhos, que conviveram com taxas elevadíssimas e sabem por experiência os estragos que ela causa. A emissão de moeda, o aumento do endividamento público não impulsionarão uma espiral inflacionária? A preocupação é procedente, embora não haja sinais de recrudescimento. Ao contrário, a forte retração da demanda e a elevada taxa de desemprego trouxeram pressão por redução de preços. Mas a vigilância há que ser permanente.

O País tem que entender as lições da sua própria história para não embarcar em soluções fáceis no curto prazo, mas que se revelam desastrosas com o passar do tempo. Sacrifícios, portanto, parecem inevitáveis, uma vez que estaremos bem mais endividados, mas serão maiores ou menores de acordo com as escolhas que fizermos e com as circunstâncias que se apresentarem no futuro.

“GEN.NEGÓCIOS & GESTÃO”, 02/06/2020

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