Discurso na Abertura do XIX Encontro Internacional de Juristas
Sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos
Funchal, 22/01/2023
Edilberto Pontes Lima
Muito oportuna a escolha do tema do XIX Encontro Internacional de Juristas, na belíssima Ilha da Madeira. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de dezembro de 1948, representou um marco no pós-guerra, uma catarse após uma primeira metade de século tão extremada, marcada por duas guerras mundiais, por assassinatos em massa, por ditaduras violentas, por perseguição a povos inteiros. Um período de banalidade do mal, para utilizar a conhecida expressão de Hannah Arendt.
A Declaração enuncia logo no primeiro artigo:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
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Passadas tantas décadas da Declaração, os fantasmas do período de trevas continuam a nos assombrar. Celebrar os 75 anos, em 2023, da Declaração dos Direitos Humanos nos ajuda a alertar que tempos de paz, de harmonia, de respeito às diferenças, de valorização da diversidade, de democracia são construções humanas. Que tempos sombrios, de intolerância, de aspereza, de perseguições podem voltar. Há muitas evidências de que ideias autoritárias, antidemocráticas vivem à espreita, em busca de contaminar corações e mentes. E frequentemente são bem-sucedidas, avançando em várias instâncias de nossa sociedade. Se na primeira metade do século XX contavam com campanhas maciças de propaganda, hoje as campanhas de desinformação se beneficiam das redes sociais para serem ainda mais eficientes do que foram naquela época. Eficiência que pode, por exemplo, transformar uma pacata e bem-intencionada cidadã em pessoa intolerante, ao acreditar em mentiras muito bem contadas sobre teorias conspiratórias em curso. A referência aos acontecimentos de 8 de janeiro, em Brasília, é óbvia, mas há muito mais. No Brasil e em boa parte do mundo.
Além disso, não é possível ignorar, por exemplo, que a Ucrânia está sendo bombardeada há quase um ano. E que há 20 anos o Iraque era invadido por razões que se revelaram falsas. Os horrores da guerra não são, infelizmente, apenas referências do passado.
Minhas senhoras, meus senhores, precisamos ficar alertas. Não devemos ter ilusões: para que todos se sintam livres e iguais, para que a democracia floresça em sua plenitude, cumprindo os ideais da Declaração Universal, a mobilização deve ser permanente. Ficar indiferente às ameaças é um erro histórico, que pode cobrar um altíssimo preço. A Declaração Universal sublinhou esse aspecto ao enunciar também que todo indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade.
Mas como falar em felicidade, em liberdade, em democracia quando milhões de pessoas passam fome no mundo? Quando o desemprego retira a dignidade de homens e mulheres.
A Declaração não desconheceu isso, ao expressamente enunciar que toda pessoa tem direito a trabalho e que quem trabalha tem direito a uma remuneração que lhe permita e a sua família uma existência conforme a dignidade humana.
Igualdade de meios, de oportunidades, o acesso de todos à saúde, à educação, ao saneamento, à boa alimentação, itens essenciais à dignidade da pessoa humana.
Liberdade e democracia só são concretas se essas questões estão resolvidas.
Os líderes mundiais que patrocinaram a Declaração tinham em perspectiva que a democracia e o capitalismo só podem perdurar se forem bons para todos. Que a democracia é frágil e para que resista os cidadãos precisam estar contentes. Que para ter apoio, os frutos da atividade econômica devem ser bem divididos, gerando melhoria de vida e prosperidade para a sociedade inteira. Não pode concentrar os ganhos em alguns poucos. Sem essa legitimidade, os apelos autoritários, autocráticos, de uma vida melhor a partir de líderes fortes que governem sem contestação, sem contrapesos a seu poder, encontram terreno fértil.
Os Tribunais de Contas contemporâneos estão em transformação, buscando uma fina sintonia com a agenda anunciada pela
Declaração Universal. Além da essencial preocupação com a probidade administrativa, com o cumprimento das leis que regem a administração pública, as Cortes de Contas brasileiras se voltaram nos últimos anos para as políticas públicas. Estão engajadas na garantia da proteção à primeira infância, na oferta de educação de qualidade para todos, no combate às desigualdades, no acesso à saúde pública, na universalização do saneamento básico. Na boa governança como meio para concretizar os fins de dignidade humana. E em questões que eram secundárias em 1948, mas que se tornaram centrais no Século XXI, como a agenda ambiental.
Afirmou Norberto Bobbio em seu artigo “Presente e futuro dos direitos do homem”, a Declaração Universal de 1948 resolveu o problema do fundamento dos direitos humanos. Se antes havia discussões sobre se os direitos humanos tinham origem divina, natural ou humana, passou-se, com a Declaração, a ser possível afirmar que havia um consenso global, mesmo entre países de diferentes culturas, sobre a validade desses direitos. O fundamento desses direitos passou a ser esse consenso.
A Declaração não resolveu o problema da concretização dos direitos, mas a eloquência de seu consenso influenciou a redação de Constituições tratando de direitos humanos e tratados internacionais sobre direitos humanos.
75 anos depois, se o consenso parece mais frágil, é necessário relembrar o porquê de ter ocorrido consenso 75 anos antes, relembrar as barbáries a que os princípios opostos aos da Declaração nos levaram, relembrar a irresponsabilidade da indulgência aos que propagam conscientemente o veneno do ódio, do sectarismo, da irracionalidade e da violência.
Senhoras e Senhores, a Declaração dos Direitos Humanos está viva. Mas as forças do mal também estão. Vivíssimas. É dever de todos as pessoas de boa vontade lutarem por ela. Como alertava o rabino Tarphon, não somos obrigados a concluir a obra, mas tampouco estamos livres para desistir dela. É nosso dever. Que Deus nos dê muito discernimento, muita energia e muita coragem para cumprirmos o nosso dever.
Muito obrigado!