Democracia e federalismo: uma intricada relação

Sumário

  1. Introdução. 2. Democracia. 3. Federalismo.
  2. Proposição 1: A descentralização é condição necessária para a democracia. 5. Proposição 2: O federalismo não é condição suficiente para a democracia. 6. Quando o federalismo restringe a democracia. 7. Conclusões.

1.  Introdução

Este texto procura refletir sobre as re- lações entre federalismo e democracia. O tema é bastante complexo, porque envolve duas categorias com vários significados. A democracia vem sendo debatida há mais de dois mil anos e tem adquirido diferentes contornos ao longo do tempo. O federalis- mo, por sua vez, resulta de construção bem mais recente, precisamente do século XVIII, com a independência dos Estados Unidos da América. Traz, contudo, diferentes con- formações, conforme a época e o lugar em que se aplica.

Talvez tenha sido Madison (1788), um dos responsáveis pelo desenho das insti- tuições americanas, ao lado de Hamilton e Jay, o primeiro a apontar as vantagens do federalismo para a democracia. Algumas décadas depois, Tocqueville (1838) analisou profundamente as duas categorias. Para o aristocrata francês, boa parte da força da América provinha da sua organização, que conseguia “combinar as diferentes vantagens que resultam da grandeza com as que decorrem da pequenez das nações”.

Ao permitir a plena participação do povo nas decisões, conseguia também o seu engajamento, sem necessidade de uso da força e muito mais eficiente do que esta. A liberdade em cada comuna e a igual- dade de cada cidadão fazia com que eles se sentissem parte na construção de uma grande nação.

De início, pela multidimensionalidade dos conceitos, assentam-se as definições de democracia e federalismo que o artigo adota. Em seguida, o texto estabelece duas proposições sobre as conexões entre fede- ralismo e democracia. Por fim, examina as situações em que o federalismo pode con- tribuir para restringir a democracia.

2.  Democracia

Há uma extensa literatura que discute a democracia, seu significado e extensão. Já “A Política”, de Aristóteles, tratou profundamente do tema. Estudiosos do porte de Marx (1871[1986]), Weber (1925

[2000]),Kelsen  (1929  [2000]), Schumpeter

(1950), Downs (1957), Hayec (1944 [1977]),

Habermas (1992 [1997]) e até Keynes (1919 [2005]) se debruçaram sobre ele.

Embora fuja ao escopo deste ensaio uma discussão profunda sobre as diferentes dimensões do conceito, é necessário que se estabeleçam algumas definições básicas. A democracia, segundo Bobbio (2000), é caracterizada por decisões tomadas por número o mais amplo possível de pesso- as, de acordo com um conjunto de regras previamente definidas, assegurada ampla liberdade aos responsáveis por tomar tais decisões, quer tomadas diretamente, quer por meio de representantes. Em outras pa- lavras, a democracia tanto pode ser direta como representativa, sendo necessário que, em ambos os casos, o maior número pos- sível de pessoas participe do processo de decisão ou de escolha dos que irão decidir, com tais pessoas, nas palavras de Bobbio (2000, p. 32), “postas em condição de poder escolher entre uma e outra”.

Remata o saudoso jurista italiano: “Para que se realize esta condi-

ção é necessário que aos chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação” (BOBBIO, 2000, p. 32).

Note-se que a definição de Bobbio (2000) é bem distinta da de Weber (2000), para quem o requisito básico para a democracia seriam eleições periódicas dos governantes, não havendo necessidade de participação popular posterior, no controle dos atos do governo. Para Weber (2000), as massas são essencialmente despreparadas nos assun- tos do Estado, tendendo a analisar os fatos emocionalmente e sem visão de longo prazo. Desse pensamento decorre a ênfase que o autor atribuía à burocracia1.

A visão de Dahl (1971 [1997]), por sua vez, aproxima-se da de Bobbio e constitui, basicamente, o conceito moderno do regi- me. Segundo o cientista político, em uma democracia:

“1) todos os cidadãos devem ter opor- tunidades plenas de formular suas preferências; 2) de expressá-las a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e da coletiva; 3) de ter suas preferências igualmente con- sideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência” (DAHL, 1997, p. 26).

Para que tais requisitos possam ser observados, Dahl (1997) lista uma série de condições que incluem, entre outras, a liber- dade de expressão, de associação, de voto, o acesso a distintas fontes de informação, a elegibilidade para cargos públicos.

Trata-se, em suma, em um conceito amplo de democracia, de governo em que o povo implementa sua vontade, diretamente ou por meio de seus representantes, o que se traduz na conhecida frase “governo do povo, para o povo”. A questão seguinte

é delimitar qual parcela do povo deve contar para a tomada de decisões. Mais especificamente, as decisões que afetam exclusivamente a população que habita uma determinada localidade devem ser decididas conjuntamente com a população de outras localidades ou exclusivamente pela população afetada pela decisão. Essa reflexão envolve diretamente o conceito de federalismo.

3.  Federalismo

O federalismo tem diversas dimensões. Formalmente, significa uma união de estados que detêm autonomia, mas que constituem um governo federal, a quem atribuem a soberania. Nota-se, portanto, que ele envolve centralização e descentra- lização ao mesmo tempo, pois se centraliza a soberania e se descentraliza uma série de decisões governamentais, ficando a cargo de cada membro decidir a melhor forma de proceder sobre diversos assuntos. Como observa o Ministro Celso de Mello (BRASIL, 1993, p. 90):

“O Estado Federal exprime, no plano da organização jurídica, a sín- tese que decorre de dois movimentos que se antagonizam: a  tendência à unidade ou à centralização, que se rege pelo princípio unitário, e a tendência à pluralidade, ou à descen- tralização, que se funda no princípio federativo”.

É relevante, ainda, distinguir o federalis- mo formal do federalismo de fato. O primeiro corresponde ao que declara a Constituição de cada país. A Constituição brasileira, por exemplo, define expressamente o Brasil como uma república federativa e, ao longo do seu texto, diversos dispositivos o deli- neiam. A Constituição dos Estados Unidos, por sua vez, também aponta diversos ele- mentos que caracterizam o país como uma federação.

O federalismo de fato, ou real, reflete a descentralização efetiva que as diferentes

esferas de governo são detentoras, nas de- cisões sobre gastos e receitas públicas e na auto-organização de suas instituições. Por exemplo, a Malásia é formalmente uma federação, mas as despesas e receitas públi- cas são extremamente centralizadas, com o governo central controlando mais de 80% das receitas e mais de 70% das despesas. Os países nórdicos, por sua vez, são formal- mente unitários, mas a descentralização de despesas e gastos públicos fica entre 30 e 40 por cento. Em um conceito menos estrito, portanto, a Malásia não seria uma federa- ção, ao contrário da Suécia e Finlândia, que se classificariam como tal.

Note-se, contudo, que tal classificação é criticada por muitos autores, sob o ar- gumento de que a descentralização nesses moldes é mera concessão do governo cen- tral. Lane e Ersson (2005, p. 176) sintetizam a crítica:

“It has been argued that extensive devolution or regional autonomy within a unitary state implies a fe- deral or semi-federal organization of the state. This is a very questionable thesis, as descentralization regionally or locally, is quite in agreement with a unitary framework. The basic diffe- rence with a federal organization is that the status of the regions and the provinces are derived from central government decision and not from a theory of states’ rights. The regions and the localities, however much autonomy they may possess in terms of decisions and finances, derive their existence from the centre”.

4.  Proposição 1: a descentralização é condição necessária para a democracia

A proposição é mais facilmente de- monstrada por oposição. Suponha um país em que quase todas as decisões sejam centralizadas, isto é, tomadas no âmbito do governo central, por representantes eleitos em cada localidade, mediante maioria

simples. Suponha ainda que o país possua território médio e população distribuída ao longo do território. Admita também que, em alguns assuntos, os gostos e preferên- cias da população de cada localidade sejam heterogêneos entre si, ou seja, diferentes localidades apresentam diferentes prefe- rências. Desse modo, se um país tem dez localidades representadas e as decisões são tomadas por maioria de forma centralizada, as preferências de alguma localidade que seja minoritária poderão preteridas.

Um exemplo ajuda a tornar mais claro o argumento. Suponha que a população de uma localidade atribua grande valor ao ensino de religião na educação formal. As demais localidades entendem que as insti- tuições educacionais não devem imiscuir-se no assunto, ficando a formação religiosa a cargo das famílias e das respectivas Igrejas. Como a decisão é tomada centralizadamen- te, ganhará a segunda visão, frustando a pretensão da primeira localidade. Tal de- cisão foi aparentemente democrática, pois, afinal, os que a tomaram foram eleitos pelo povo e decidiram pelo sistema de maioria. No entanto, a pretensão que poderia ser da totalidade ou de uma maioria muito expressiva da população de uma localidade foi sufocada.

Sem descentralização há, pois, possibi- lidade de a vontade de uma população não ser respeitada, tendo em vista assuntos que são de foro eminentemente local serem de- cididos por eleitores de outras localidades. Tal aspecto se acentua se a heterogeneidade é uma característica do país. Tomemos, como exemplo, o Canadá, país com duas línguas oficiais, distribuídas entre as dife- rentes províncias. Por óbvio, quanto mais centralizadas as decisões, menor o caráter democrático delas, dado que as preferên- cias de cada província, conforme a língua e a origem cultural, tendem a ser muito distintas. Não por acaso, há um forte movi- mento separatista em Quebec, província de língua francesa, e que se fortalece quando ações centralizadoras se ensaiam.

Tal reflexão se amolda a todas as de- cisões tomadas centralizadamente. Por exemplo, quando o Constituinte originário brasileiro decidiu que matérias de direito penal seriam de competência privativa da União, perdeu-se um pouco do caráter de- mocrático da Carta. Afinal, determinados bens jurídicos podem ser muito valiosos no Acre, merecendo a ação da ultima ratio do Estado, enquanto, no restante do País, o bem é de menor valor, merecendo reprimenda meramente moral. Como as decisões serão tomadas em Brasília, pelo critério de maioria, o povo do Acre não verá a prevalência de suas preferências.

Nessa linha de argumentação, a literatu- ra que trata do federalismo fiscal defende a descentralização. O teorema da descentra- lização de Oates (1972, 1999) postula que as preferências das pessoas são mais bem observadas quando as decisões são toma- das no nível local. Observa Oates (1999, p. 1122, grifo nosso):

“In the absence of cost-saving from the centralized provision of a [local public] good and of interju- risdictional externalities, the level of welfare will always be at least as high (and typically higher) if Pareto- efficient levels of consumption are provided in each jurisdiction than if any single, uniform level of consumption is maintained across all jurisdiction”.

O argumento é que quanto mais pró- ximo o governo estiver do cidadão, mais fácil será identificar suas preferências. Logo, o bem-estar social seria tanto maior quanto mais se pudesse descentralizar as decisões de gastos, de receitas e todas as decisões que dissessem respeito unicamen- te ou majoritariamente à população local. Desse argumento resultaria o princípio da subsidiariedade, que é como a literatura européia chama o teorema da descentra- lização de Oates, segundo o qual todas as tarefas públicas deveriam ser providas pelas esferas locais de governo. O papel do governo central seria, pois, subsidiário,

i.e., apenas nas funções em que sua atuação fosse indispensável.

A sempre citada obra de Tocqueville (1998), a monumental “A democracia na América”, de 1835, observa que é nos governos locais que a democracia, a parti- cipação dos cidadãos, se dá de forma mais intensa. Nos governos centrais, torna-se difícil para o cidadão perceber a sua impor- tância individual, a diferença que fará para o todo a sua participação. Bem diferente do que ocorreria nas pequenas comunidades, em que a construção de uma ponte, de uma estrada, de uma escola ou hospital tem influência direta na vida de cada morador. A tendência de envolvimento, de partici- pação, seria, portanto, muito maior. Nessa linha, o renomado autor raciocina que as responsabilidades alocadas nos governos locais em conjunto com a liberdade de as- sociação seriam as condições fundamentais para o florescimento da democracia.

Note-se que se escolheu o conceito de descentralização e não de federalismo como condição necessária para a democracia. Isso porque não há que se negar que a Suécia, a Finlândia e a Dinamarca são grandes de- mocracias, no entanto, são países unitários. Não são, entretanto, países centralizados. Ao contrário, os governos locais controlam entre 30 e 40% das receitas e despesas públi- cas. De outro lado, há países formalmente federalistas, mas com grande concentração das decisões públicas, como é o caso da Malásia, da Bélgica e do México (LANE; ERSSON, 2005), o que acaba por resvalar na discussão que se fez acima sobre fede- ralismo formal e federalismo de fato.

5.  Proposição 2: o federalismo não é

condição suficiente para a democracia

Recorre-se novamente a Tocqueville (1998, p. 91), dessa vez para lembrar que o ilustre autor reconhece que nem sempre

o pleno envolvimento do cidadão com as questões locais acontece, já antecipando que o federalismo não constitui condição

suficiente para a plena democracia. Quan- do examinou os Estados do Sul dos EUA, notou que a participação do povo não era tão ativa quanto a da Nova Inglaterra, apontando que:

“À medida que descemos para o Sul, percebemos que a vida comunal se torna menos ativa; a comuna tem menos magistrados, direito e deveres; a população não exerce aí uma influ- ência tão direta sobre a coisa pública; as assembléias comunais são menos freqüentes e se estendem a menos objetos. O poder do magistrado eleito é, pois, comparativamente, maior e o do eleitor, menor; o espírito comunal é menos vivo e menos poderoso”.

Além do possível baixo envolvimento dos habitantes locais, cabe analisar as demais razões por que o federalismo não garante a democracia. Suponha uma federa- ção em que tenha se instalado uma ditadura. O ditador indica todos os dirigentes locais. Talvez caiba a pergunta se se trata de fato de uma federação, já que a autonomia das unidades é muito restringida pela indicação de seus dirigentes pela autoridade nacional. Efetivamente, pode-se avaliar que a federação é meramente formal; a realidade, contudo, indicaria um modelo unitário, em que todas as decisões são tomadas pelo governo central e os governantes locais se configuram como meros delegados do governo central.

Suponha, então, de forma distinta, que se trata de um federalismo pleno, com governantes locais autônomos em relação ao governo central, quer eleitos localmen- te, quer ditadores locais. Suponha que o governo central é uma ditadura. Admita ainda que não há separação de poderes nem liberdade de imprensa. Não se contesta, nesse caso, a existência de federação: há um governo central que exerce a soberania, governos autônomos que integram a fede- ração e cláusula de indissolubilidade. Por óbvio, esse regime não é democrático.

Uma terceira situação permite igual- mente concluir a não necessária simulta-

neidade entre federalismo e democracia. Admita uma federação em que há eleições para o poder central e para os governos locais e que estes sejam autônomos em relação àquele. Admita inexistir, contudo, imprensa livre e liberdade de associação. Conforme os critérios acima citados de Bobbio (2000) e de Dahl (1997), faltam os requisitos básicos para se falar em demo- cracia. Não se questiona, entretanto, a plena existência de federalismo.

Por fim, imagine-se uma federação em que há eleições livres e periódicas em todas as esferas de governo, com liberdade plena de imprensa e de associação. Admita, con- tudo, a inexistência de separação de pode- res. O Chefe do Poder Executivo controla o Poder Judiciário e o Poder Legislativo,

o que se repete tanto no governo central quanto nos governos locais. A existência de eleições livres e periódicas não preenche todos os requisitos para a democracia. Na situação em escopo, o que há é uma ditadu- ra que se renova periodicamente. É como se o povo escolhesse seu novo ditador para

o próximo período. Sem Poder Judiciário independente, não se pode contestar se as decisões do governante são conforme as leis. O Poder Legislativo subordinado ao Poder Executivo torna este imune à fiscalização e à contestação. O máximo que a população poderá fazer é trocar o ditador nas próximas eleições. Novamente se demonstra a não-incompatibilidade entre federalismo, que neste caso é pleno, e ditadura.

É fácil ver na experiência internacional diversos países que são constitucional- mente federais, mas onde é difícil afirmar que constituem democracias plenas, como a Rússia e a Malásia. Também na história brasileira, registram-se diversos momentos em que a Constituição era federalista, mas se vivia em regime não-democráti- co, caso das Constituições de 1937 e de 1967/69.

Mesmo no Brasil de hoje, em muitos

municípios o sistema de pesos e contra-

pesos é bastante frágil, havendo excessiva predominância do Poder Executivo, com câmaras de vereadores sob controle, na quase totalidade, dos prefeitos. Além dis- so, por problemas de baixa educação e de ausência de formação política, os cidadãos não se sentem preparados ou motivados para fiscalizar as ações do governo local, em situação semelhante à exemplificada por Tocqueville (1998) nos estados do Sul dos Estados Unidos na primeira metade do século XIX.

Prosperam, por isso, casos de corrup- ção em diversos municípios brasileiros, conforme amplamente noticia a imprensa nacional. Em recente entrevista, o Ministro da Controladoria Geral da União apontou que, em dois terços dos 1.041 municípios investigados, há irregularidades graves. Entre outras inúmeras formas de corrup- ção, vale a pena ilustrar uma parte da entrevista do ministro que mostra fatos estarrecedores2:

Roubam as merendas das crianças. Descobriu-se o seguinte: uma empre- sa sediada em São Paulo, através de sua representação no estado, articula- va com as prefeituras um kit corrupção. Eles orientavam o prefeito desde a forma como fazer o edital direcionado para que só aquela empresa vencesse à forma de atestar o recebimento dos gêneros alimentícios, atestando que foi recebida quantidade maior, às vezes o dobro do que efetivamente foi entregue. Para depois dividirem o lucro entre o empresário e o prefeito” (FERNANDES, 2006, grifo nosso).

Por óbvio, tal estado de coisas enfra- quece o argumento de que nas localidades as preferências dos cidadãos tendem a ser mais observadas, conforme a doutrina em favor da descentralização preconiza. A cor- rupção é, talvez, a forma mais perversa de subversão da democracia nas localidades, mas não é a única. Com freqüência, as ins- tituições locais funcionam precariamente, com controle político quase que absoluto

dos prefeitos, não apenas das câmaras de vereadores, como dos diversos conselhos municipais (educação, saúde) que, em princípio, deveriam advir da população. A vida na comuna, com cidadãos vibrantes e senhores do destino local e, por meio dele, do futuro da nação, está, por conseguinte, muito longe da realidade da maior parte dos municípios brasileiros.

É claro que sempre se pode argumentar que a participação popular é um processo, que envolve aprendizado, tendendo a aperfeiçoar-se ao longo do tempo. A tese é forte e pode ser comprovada em algumas situações. Vejam-se as experiências com orçamento participativo. Os resultados são muito distintos, conforme a localidade que o adotou, mas, em alguns lugares, foi relativamente bem-sucedido (SOUZA, 2001).

Os três problemas da participação, conforme aponta Abers (2000), citado por Souza (2001, p. 6), resumem bem as dificul- dades inerentes ao pleno envolvimento do cidadão nos negócios locais nos moldes de Tocqueville (1998):

“O primeiro é o ‘problema de im- plementação’, isto é, mesmo quando os governos buscam implementar mecanismos participativos voltados para integrar grupos menos pode- rosos no processo decisório, os mais poderosos têm força para impedir essa participação. O segundo é o ‘problema da desigualdade’: mesmo quando espaços são criados para que todos participem, as desigualdades socioeconômicas tendem a criar obs- táculos à participação de certos gru- pos sociais. O terceiro é o ‘problema da cooptação’: mesmo que os espaços de participação sejam genuinamente representativos, o desequilíbrio entre o governo e os participantes, no que se refere ao controle da informação e dos recursos, faz com que a participa- ção seja manipulada pelos membros do governo”.

6.  Quando o federalismo restringe a democracia

Aqui, vai-se retomar a discussão sobre comoasdecisõestomadascentralizadamente podem resultar em déficit democrático. Isso porque, como se apontou anteriormente, o federalismo envolve, necessariamente, centralização e descentralização, o que faz com que parte das decisões acabem por ser necessariamente tomadas centralmente. Além do problema de a regra de maioria nas decisões centrais poder implicar escolhas em que a quase totalidade do povo de uma locali- dade decidiria diferentemente, mas, por estar em uma federação, obriga-se a se submeter, ainda há o problema da simetria federativa. Em poucas palavras, a simetria fede- rativa significa a busca do equilíbrio da federação, assegurando-se uma câmara legislativa com representação igual das unidades federadas, geralmente com poder de veto sobre algumas ou todas, conforme o país, decisões tomadas pela casa legislativa que representa o povo. É o que faz, por exemplo, o Bundesrat alemão nas decisões que afetam os Estados, inclusive sobre mecanismos de equalização fiscal (WATTS; HOBSON, 2000), o Senado americano e, de forma ainda mais ampla, o Senado brasilei- ro, que legisla sobre todas as matérias de

competência da União.

Ora, se decisões tomadas por maioria dos representantes do povo podem ser barradas por representantes de estados, não importando o tamanho da população de cada estado, há um óbvio déficit democrá- tico. O modelo brasileiro é emblemático: o voto de um senador do Amapá, eleito com menos de 200 mil votos, tem o mesmo peso de um senador de São Paulo, eleito com al- guns milhões de votos. Eventuais coalizões de estados menos populosos podem barrar escolhas de estados mais populosos. Dessa forma, uma emenda constitucional apro- vada na Câmara Baixa pode ser rejeitada na Câmara Alta, embora a quantidade de eleitores dos que votaram a favor da pro-

posta nas duas casas seja muito superior à quantidade de eleitores dos que votaram contra. A vontade do povo, fundamento da democracia, no caso por meio de seus representantes, não foi, pois, respeitada.

Isso pode ocorrer em todas as federações em que há uma distribuição muito irregular da população ao longo do território, isto é, em que alguns estados concentram boa parte da população e em que haja uma segunda câ- mara com poder de veto sobre matérias de- cididas na casa de representação popular.

É óbvio que a casa revisora se justifica por outras razões, como, por exemplo, a manutenção da unidade nacional (BIRD; EBEL, 2005). Afinal, o modelo federativo necessita de instituições que garantam o equilíbrio, sendo o eventual déficit demo- crático o preço pela federação. Pode-se discutir a extensão desse déficit e formas de reduzi-lo, mas sua existência em alguma medida parece inevitável.

Para compensar esse possível déficit, muitas federações caminham para inten- sificar a descentralização, ampliando as competências dos governos locais. Esse movimento é particularmente intenso em federações em que existem muitas dife- renças ao longo do país, especialmente diferenças étnicas, religiosas e lingüísticas, como na Bélgica, no Canadá, na Suíça e na Espanha (BEYME, 2005).

O que Lijphart (1999) chamou de “de- mocracia consorciativa” exprime bem a situação de federações que convivem com diferenças marcantes. Nesses casos, para a manutenção da unidade da federação,  é preciso assegurar máxima descentrali- zação e poder de veto de uma unidade da federação sobre as outras em questões de interesse comum.

7.  Conclusões

Este trabalho procurou investigar a relação entre federalismo e democracia. Apontou que as duas categorias não precisam necessariamente coexistir.

Notou-se que, se o federalismo pode contribuir para a democracia, ele apresenta muitas características que podem restringi- la, já que é da sua essência a combinação entre centralização de algumas ou muitas decisões e a descentralização de outras tan- tas. Além disso, a existência de instituições nacionais com idêntica representação de cada unidade federativa pode apresentar elementos antidemocráticos, como é o caso das câmaras com representantes dos esta- dos, geralmente com poder de vetar deci- sões tomadas pela câmara de representação popular, a exemplo do Senado brasileiro, do Senate americano e do Bundesrat alemão.

O que parece consensual é que para aprofundar a democracia é necessário ampliar a descentralização, permitindo maior assimetria na federação. Regras co- muns para todo o país tendem a sufocar as preferências de determinadas localidades. Além disso, é preciso criar mecanismos de expressão e respeito das preferências das minorias. A democracia consorciativa foi um dos desenhos institucionais encontra- dos para federações muito heterogêneas.

Combinar “as vantagens da grandeza e as da pequenez” assegurando o máximo de democracia não é simples e exige cons- tante aperfeiçoamento das instituições. O excesso de centralização é sempre um risco que federações do mundo inteiro se vêem às voltas.

Notas

1 Em Valente (2006), há uma boa resenha sobre o pensamento de Weber sobre a democracia.

2 Entrevista a Bob Fernandes (2006) com o Ministro da Controladoria Geral da União, em 17 de abril de 2006, intitulada “Rouba-se em até 80% dos municí- pios”, disponível em “terramagazine.terra.com.br”.

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